João Brandão, estudioso de fenômenos sociais, modismos
e frivolidades, dedica-se no momento à pesquisa do punk. - Ainda não
cheguei a nenhuma conclusão - disse-me ele. - Mas suspeito que o punk
veio atender à necessidades do país nesta conjuntura. E acrescentou: -
Não me refiro, é claro, a modalidade do punk cultivado pelas classes
alta e média da zona sul. Este é um punk de espírito e camisetas
importados, jaqueta de couro valendo um punhado de dólares. É artigo de
importação, que deve figurar na lista de produtos proibidos pelo Delfim.
Refiro-me ao outro, o de camiseta adquirida na rua Senhor dos Passos e
rasgada. O moço não a rasgou para demonstrar maior identificação com o
punk: ela está rasgada porque é velha e muito batida. Em suma, o punk
pobre. - Que diferença faz, se esta é uma característica exterior? -
perguntei-lhe. - Faz muita diferença, porque o punk dos pobres,
suburbano e sofrido, revela no seu despojamento, que para ser punk é
necessário enfrentar uma barreira e abrir mão de toda a sociedade de
consumo. Ao passo que o leblon é consumista, no esquema clássico. - O
João, e todos dois não estão inseridos nessa tal sociedade burguesa de
consumo, que se adverte com seus palhaços, contestadores ou
oficialistas? - Não importa que a sociedade como estamento seria dos
dois grupos e os tolere igualmente, enquanto a indústria fabrica objetos
sofisticados para o uso do punk de salão. Importa é a atitude deles
diante da vida. Um finge contestar, outro contesta mesmo. - Contesta em
verso, em som, em gesticulação, em aparência. - Mas contesta com
convicção, né? Porque os punks malditos sabem que, passada a moda, eles
terão de inventar outra forma de lazer que seja protesto, ou outra forma
de protesto que seja lazer, ao passo que os ricos não estão ligando
para isso, o futuro deles está garantido, na medida em que pode garantir
alguma coisa no mercado de vida. Então eu simpatizo com o punk
despojado, mau poeta e mau cantor, mas empolgado pela missão que se
atribui, de destruir a ordem conservadora por meio da música, do grito,
do gesto e do anarquismo primário. - Eles são inocentes, talvez. - E
daí? A inocência ainda não chegou a ser crime, embora não esteja muito
longe disso. Os punks trazem uma receita de aparência ingênua, mas que
tem sentido. Se tudo está errado por aí - e todos nós estamos mais ou
menos convencidos disso - uma postura punk, descrente dos métodos e
processos consagrados para nos salvar do abismo, tem razão de ser. Os
garotos dizem as coisas com franqueza selvagem. A arte deles não é
mozartiana ou sequer seresteira de diamantina, mas tem função,
explica-se pela circunstância. - Desculpe: são todos uns alienados. - É
possivel, mas os alienados do lado de cá, do meu, do seu lado, curtem
uma alienação maior ainda, porque reconhecem o erro e nele perseveram,
como se não o reconhecessem. O punk pode não ser novidade, e parece que
depois do antigo testamento não apareceu nada de novo sob o sol. Mas ele
dá um recado. Não é à toa que o punk de verdade tem seus arraiais em
São Paulo, onde outro dia aconteceu aquilo que você sabe. A maioria dos
rapazes nem mesmo está desempregada, porque ainda não conseguiu emprego.
Vestem-se de preto porque a situação deles está preta, a roupa é
rasgada porque não há outra. Os versos são detestáveis, porque a vida
ficou detestável para o maior número. O som é infernal, porque o inferno
está ai. Os punks não pretendem ser simpáticos, eles querem mesmo é
gozar da antipatia geral. Estão divididos, eu sei, e não só entre ricos e
pobres. Dividem-se entre pobres e pobres, cada grupo achando que o
outro grupo está errado, mas na própria variedade de erros está a marca
geral deles, um sinal de inconformismo até consigo mesmos. Não há
praticamente duas pessoas no país, neste momento, que tenham opiniões
concordantes sobre o que é preciso fazer para consertar o torto social.
Todos acham que é urgente aquele milagre que não seja milagre falso, mas
ninguém conhece a fórmula ou, se conhece, não conta. O punk é mais
sério do que ousamos imaginar. Até seu nome impressiona. Que quer dizer
punk? "Madeira podre, isca, mecha, fedelho", segundo os dicionários. Não
quer dizer nada de unívoco. Pra mim, punk, londrino, quer dizer pum, em
português coloquial. E é isso mesmo: um gás importuno, estrondoso, no
salão de festa, na rua, no gabinete da autoridade. É um som altamente
contestatório das conveniências, preconceitos e idéias congeladas. -
João, estou te estranhando! - Eu também estou me estranhando. E estou
gostando de me estranhar. Mas sou apenas um observador, desculpe. Como
disse, não conclui nada, por enquanto. O que disse são palpites. Talvez
eu tenha de descobrir uma velha camiseta rasgada, pregar nela uma
estampa de caveira ou de enforcado, e sair por aí, passando para trás
roqueiros e newaweiros, e cantando a anarquia como forma de pagamento da
dívida externa. Quem sabe? O bom observador tem de infiltrar-se no meio
observado e adotar seus códigos.
Crônica de Carlos Drummond de Andrade
Crônica de Carlos Drummond de Andrade